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Precatórios – Bom Senso e Responsabilidade

Estadão – by Gilberto Kassab, Mayor of the City of São Paulo

A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que estabelece novas regras para o pagamento de dívidas de Estados e municípios, fixado em decisões judiciais, enseja críticas, controvérsias e até visões parciais e desprovidas do senso de realidade. Ao contrário do que se imagina, a iniciativa não pode ser confundida, em nenhuma hipótese, com “calote” aos credores. O objetivo principal da PEC é justamente o oposto, ou seja, possibilitar o planejamento do pagamento de precatórios, que, não raro, são passivos acumulados ao longo de décadas. E, mais relevante ainda, assegurar que as dívidas sejam efetivamente liquidadas, sujeitando os governantes às rígidas punições previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, sequestro de valores e bloqueios de transferências voluntárias, entre outras.

Pelas regras atuais, é extremamente difícil planejar a liquidação dos débitos existentes, uma vez que decisões judiciais determinam o sequestro de recursos, comprometendo a gestão das finanças públicas e as obrigações decorrentes de compromissos assumidos, seja com pagamento de salários ou de fornecedores. Vale mencionar também que o governo federal abriu mão de R$ 8,9 bilhões em receitas, com mudanças no IPI, correção da Tabela do Imposto de Renda e outras medidas de incentivo à produção. Desse total, a União renunciou a R$ 4,2 bilhões, enquanto Estados e municípios deixaram de receber R$ 4,7 bilhões, por conta da redução da receita dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Nos últimos meses, a arrecadação de todos os municípios foi afetada pela redução de cerca de R$ 2,1 bilhões no FPM – de modo especial, a situação de mais de 4.500 municípios que têm até 30 mil habitantes e dependem fundamentalmente desses repasses.

Ademais, os precatórios são corrigidos por índices heterogêneos, aplicados de forma variada pelos diversos Tribunais de Justiça dos Estados, acarretando distorções de toda ordem. A título de exemplo, uma área desapropriada na cidade de São Paulo em 1999, ao custo de R$ 23,8 milhões, gerou um precatório cujo valor corrigido atinge R$ 71 milhões. Como a Prefeitura já pagou R$ 24,2 milhões, deve ainda a quantia de R$ 46,8 milhões. Caso fosse aplicada a nova regra aprovada pelo Senado, que prevê correção e juros pelos critérios da poupança, esse precatório deveria ser de R$ 48,7 milhões, e não de R$ 71 milhões.

Além disso, a PEC aprovada no Senado define para os Estados um valor mínimo de pagamento anual de precatórios que varia de 0,6% a 2% da receita corrente líquida. Para os municípios os porcentuais a serem depositados anualmente variam de 0,6% a 1,5% também da receita corrente líquida. Tais recursos ficarão disponíveis em conta especial gerenciada pelo Poder Judiciário.

Dos recursos destinados ao pagamento de precatórios, 60% serão reservados para pagamento de dívidas por meio de leilões eletrônicos e os outros 40%, para pagamento à vista, em ordem crescente de valor. A liquidação das dívidas por leilão é uma decisão discricionária dos credores, que, optando por negociar seus títulos de maneira transparente e pública, não se subordinarão aos escritórios “especializados” que atuam no mercado. Por outro lado, o pagamento em ordem crescente de valor possibilitará que os precatórios de menor valor sejam pagos em primeiro lugar, corrigindo-se, assim, injustas distorções que a atual legislação permite.

Entre os novos precatórios, terão primazia os alimentares cujos credores sejam cidadãos com 60 anos ou mais, com valores de até 90 salários mínimos para os municípios e 120 para os Estados. Garante-se, ainda, a devida correção das dívidas com base nos índices e juros da Caderneta de Poupança. Buscou-se, assim, tornar as regras socialmente mais justas, assegurando que determinações do Poder Judiciário possam ser cumpridas sem que os munícipes tenham postergadas as suas demandas mais urgentes.

Sob o prisma das prioridades, como se sabe, a administração pública, sobretudo nos municípios, ajusta seu foco em função das maiores demandas sociais. Áreas como saúde, educação, transporte e saneamento básico encabeçam o rol de prioridades e das demandas por recursos públicos. Veja-se, por exemplo, o caso de São Paulo. Centro de uma região metropolitana com 39 municípios e cerca de 20 milhões de pessoas, nossa capital herda parcela considerável dos efeitos da conurbação entre os espaços urbanos, significando que seu crescimento demográfico ultrapassou o ritmo da organização política e social. Ademais, o crescimento desordenado gerou espaços diferenciados e manchas urbanas multiformes. E, por consequência, apesar dos esforços das municipalidades para aplicar políticas condizentes com as demandas e pressões sociais por serviços qualificados, observa-se, em muitos espaços, um “apartheid” social. As grandes cidades brasileiras retratam esta dura realidade.

Não podemos fechar os olhos à identidade urbana do Brasil contemporâneo: se em 1970 o País tinha apenas duas metrópoles, passou a ter cinco em 2000 e as cidades médias, no mesmo período, passaram de 30 para 194. Hoje cerca de 80% dos brasileiros vivem em áreas urbanas, enquanto as 15 metrópoles concentram as forças produtivas, centralizando 62% da capacidade tecnológica do País. Essa situação impõe ingente desafio: gerir os recursos disponíveis para mitigar as dívidas sociais acumuladas ao longo dos anos. Os desafios são monumentais. A título de exemplo, cabe ressaltar que, na área da saúde, em São Paulo a meta é desafiadora, ou seja, atingir o padrão aceitável de 4,5 leitos para cada mil habitantes.

Em face de desafios como esse, resta aduzir que a aprovação de mecanismos que estabeleçam equilíbrio entre pagamento de precatórios e atendimento às prioridades é o ponto central que norteia a intenção de gestores públicos responsáveis.

Gilberto Kassab (DEM-SP), engenheiro e economista, é prefeito de São Paulo

Estadão – Terça-Feira, 28 de Abril de 2009

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