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Outros Aspectos da PEC 12/06 e A Imagem do Brasil em Jogo

Luiz Felipe C. Dias de Souza*
Daniel Gatschnigg Cardoso**
versão em ingles

1.    Introdução

O Senado Federal aprovou na semana passada uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 12/06 com o alegado objetivo de solucionar um problema antigo e sério: equacionar o “enorme volume de precatórios não pagos por parte dos Estados e Municípios”. Esta é a justificativa constante de sua exposição de motivos e reiterada enfaticamente no relatório final da I. Senadora Kátia Abreu, relatora da proposta. Sua redação final, entretanto, não respeitou o motivo desta proposta e acabou por inserir dispositivos que beneficiam a União Federal (e não apenas os Estados e Municípios), em prejuízo de seus credores.

Alterar a Constituição Federal é algo da maior seriedade e que deve ser tratado com o mesmo nível de importância e cuidado que suas repercussões causarão perante o país e o mundo.

As alterações a que faremos referência neste texto, acaso permaneçam no texto final a ser incorporado à Constituição Federal, representarão uma agressão aos direitos dos credores e, mais do que isso, um retrocesso para o Brasil, mediante a inclusão sorrateira de dispositivos economicamente irracionais, juridicamente viciados (por desvio de finalidade), e eticamente injustos, com efeitos graves para a comunidade nacional e internacional.

Por esta razão, e tendo em vista que a PEC nº 12/06 ainda deverá ser aprovada pela Câmara dos Deputados, teceremos breves considerações que esperamos possam provocar o debate sobre alguns aspectos da proposta que passaram em branco até o momento e contribuir para que ao menos alguns de seus dispositivos sejam vetados ou alterados.

O meio debatido e proposto para a solução do problema das dívidas dos Estados e municípios consistia, essencialmente, na criação de um sistema especial de quitação de débitos pelo qual os credores de precatórios que aceitassem o maior deságio teriam preferência no recebimento de seu crédito. O sistema especial está previsto no novo artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, proposto pela nova redação. Inicialmente a sua redação contemplou que todos os entes da Federação (União Federal inclusive) disporiam do sistema especial, mas como tal seria evidentemente contrário à motivação original da PEC, que se limitava ao problema dos Estados, DF e Municípios, a redação atual, em resposta às críticas feitas, ao menos, quanto a esse ponto, retirou a União Federal da redação proposta.

O sistema do art. 97 mereceria diversas críticas que, entretanto, já vêm sendo realizadas por diversas entidades, inclusive pela Ordem dos Advogados do Brasil e em especial por sua Comissão Especial dos Credores Públicos (Precatórios), de forma que o presente texto se limitará a apontar as alterações incorporadas na redação final da PEC n.º 12/06, e que se mostram inteiramente desconectadas do seu propósito original. As alterações são aquelas incorporadas ao art. 100 da Constituição Federal, que não excepciona sua aplicação aos Estados, DF e Municípios, aplicando-se, portanto, também à União Federal. Ocorre que a União Federal não apresenta qualquer problema para a quitação de suas obrigações judiciais e não precisaria ser beneficiada por qualquer nova regra, tanto que as vem cumprindo com rigor e tem acumulado, ao menos até a presente data, grande credibilidade por este fato.

A primeira mudança trata da inclusão do parágrafo 9º ao artigo 100, que prevê a compensação dos valores devidos a título de pagamento de precatórios com débitos a que estariam sujeitos seus titulares. Tal previsão, veio sob o manto de redação obscura e geradora de incertezas quanto aos limites do que poderá efetivamente ser objeto de compensação, minando seriamente a segurança jurídica de seus detentores e, por esta mesma razão, comprometendo sua capacidade constitucionalmente garantida de comercializá-los, conforme ressaltado no relatório elaborado pela I. Senadora Kátia Abreu.

A segunda trata da inclusão do parágrafo 11 ao art. 100 da CF, que prevê a alteração do critério de correção dos precatórios em geral, reduzindo drasticamente o valor dos precatórios em geral, inclusive os já expedidos e os a expedir.

A terceira mudança trata da inclusão do parágrafo 12 ao mesmo artigo 100, pela qual lei complementar poderá criar regime especial para pagamento de precatórios (como aquele proposto na redação dada ao 97 do ADCT ou outro qualquer), atingindo não apenas os estados, Distrito Federal e municípios, como também a União Federal.

O presente texto abordará esses pontos da PEC aprovada pelo Senado Federal, a começar pelo primeiro deles, por implicar evidente agressão aos mais basilares conceitos de justiça, legalidade e credibilidade do país perante os seus e a comunidade internacional, além de faltar com racionalidade econômica que sustente a redação proposta.

2.    A alteração do critério de correção monetária dos precatórios federais

A redação proposta para o parágrafo 11º do artigo 100 da CF prevê que: “A correção de valores de precatórios pendentes de pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de correção e percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios” (g.n.).
A adoção deste novo critério de correção, diga-se de pronto, implicaria redução substancial do valor a que têm direito os credores de precatórios em geral, tanto maior quanto maior for o prazo de seu pagamento (como no caso daqueles parcelados em 10 anos). E como se vê, referido parágrafo, além de afetar não apenas os precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, como também os devidos pela União Federal, conforme seja interpretado, poderia também afetar: (a) os precatórios parcelados na forma do artigo 78 do ADCT e (b) ate mesmo os precatórios já expedidos. Há pelos menos 5 razões pelas quais o dispositivo merece ser vetado ou, quando menos, ter sua redação alterada:

(i)    O índice oficial de correção incidente sobre a caderneta de poupança é, atualmente, a Taxa Referencial – TR e sua aplicação implicaria redução abrupta (podendo chegar a 30%) em relação ao critério atual (IPCA-E). A diferença entre uma e outra poderá ser ainda maior, se de fato as indicações do governo de redução da taxa da poupança se efetivarem. Ocorre que enquanto a redução da taxa da poupança leva em conta o fato de serem seus beneficiários isentos do imposto de renda, os detentores de precatórios sofrerão a regular incidência dos tributos, uma vez recebido seu crédito. Portanto, aplicar a mesma taxa para ambas as situações é economicamente irracional e injusto, qualquer que seja o índice aplicável a caderneta de poupança;

(ii)    A alteração de critério de correção dos precatórios em benefício da União Federal e prejuízo de seus credores não se justifica. A União Federal não necessita de tal auxílio, vem cumprindo rigorosamente o pagamento dos precatórios com base nos critérios (adequados) atuais e, por esta mesma razão, o objetivo e motivação da PEC nº 12/06 está limitado às dívidas dos Estados, Distrito Federal e Municípios;

(iii)    A TR é atualmente o critério aplicável à correção da caderneta de poupança. Ocorre que a TR não é índice de correção monetária e não reflete a corrosão da moeda. Por essa razão o STJ e o STF já se manifestaram no sentido de que o IPC é o índice adequado para essa finalidade;

(iv)    Em qualquer hipótese, a alteração de critério não pode atingir os precatórios parcelados na forma do art. 78 do ADCT, que devem ser liquidados “pelo seu valor real”. A TR não reflete a “real” corrosão da moeda. A redação do parágrafo 11, se não for vetada, deve ser alterada para esclarecimento deste ponto;

(v)    Também nesta hipótese, deve-se excepcionar de forma clara que a alteração do critério não afetará os precatórios já expedidos (e que já vêm sendo pagos, no caso da união Federal), pois do contrário haveria evidente mudança de regra no meio do jogo, com sérias e graves conseqüências para a imagem do país.

Vejamos com maior detalhe cada um desses pontos.

2.1.    Índice oficial de correção da poupança não serve para correção de precatórios

O índice oficial de correção monetária incidente sobre a caderneta de poupança não pode ser utilizado como critério de correção monetária dos precatórios. A remuneração paga ao investidor pelas aplicações em poupança é isenta de impostos, enquanto a remuneração paga pelo precatório é tributada. Logo, o resultado líquido da remuneração paga pelo precatório será sempre inferior ao rendimento que seria pago pela poupança, não se justificando, economicamente, a aplicação da mesma taxa de correção para ambos os casos.

A diferenciação entre a correção da poupança e de outros ativos geradores de renda em função do fator fiscal vem sendo admitida pelo próprio Governo, que manifestou recentemente a intenção de definir a correção da poupança em percentual incidente sobre a taxa Selic, justamente sob a justificativa de que: “ao contrário dos fundos e outras aplicações, a poupança é totalmente garantida pelo governo, tem liquidez imediata, é isenta de Imposto de Renda e, além disso, os poupadores não pagam taxa de administração aos bancos” (cf. Agência Estado, 17.03.2009).

Além disso, o atual índice de correção incidente sobre a caderneta de poupança – a Taxa Referencial (TR), é muito inferior ao Índice de Preços ao Consumidor, que até hoje vem sendo utilizado para a correção dos precatórios federais. Portanto, tal alteração – além de inadequada, conforme se verá adiante – acarretará brutal redução do valor do crédito. Adotando-se os percentuais disponíveis nos últimos anos, a diferença entre os índices seria de mais de 4% (quatro por cento) a.a., podendo chegar a 30% (trinta por cento) de redução ao final do prazo decenal de pagamento em relação aos precatórios parcelados sob o regime do artigo 78 do ADCT. Ou seja, além de se submeterem a um regime moratório, tais credores seriam tolhidos em parte significativa de seu crédito.

Por tais motivos, não se justificaria, primeiramente, por uma perspectiva de racionalidade econômica e de justiça, a aplicação do índice de correção da caderneta de poupança aos precatórios em geral.

2.2.    Alteração de critério em beneficio da União Federal não se justifica e viola o motivo e finalidade da PEC nº  12/06

O princípio da legalidade previsto no artigo 5º da Constituição Federal converteu-se atualmente no “princípio da reserva legal proporcional” (proporcionalidade), exigindo cumulativamente a: (a) constatação da necessidade de utilização da alteração normativa; (b) adequação dos meios utilizados e os fins perseguidos e (c) razoabilidade (proporcionalidade em sentido estrito), que significa a “proibição de excesso”, limitando a produção de normas e a execução de atos eminentemente arbitrários, injustos ou irrazoáveis do Poder Público.

É evidente a ausência de necessidade da alteração do critério de correção dos precatórios federais em beneficio da união Federal, que jamais atrasou o pagamento de qualquer precatório, independentemente da sua natureza. Portanto, há clara inadequação entre o meio utilizado (alteração do artigo 100 da CF em beneficio de todos os entes federativos, inclusive União Federal) e a finalidade eleita na exposição de motivos (equacionar o “enorme volume de precatórios não pagos por parte dos Estados e Municípios”). Quaisquer alterações que tenham o objetivo de aliviar as dívidas judiciais dos entes da Federação deveriam se limitar a procurar solucionar a questão das dívidas acumuladas pelos Estados e Municípios.

A evidente incompatibilidade entre o motivo (finalidade) da PEC no 12/06 e seu parágrafo 11º, que beneficia a União Federal em prejuízo de seus credores, reforça a necessidade de seu veto.

2.3.    A TR não é índice de correção monetária

Atualmente a TR é o critério aplicável à correção da caderneta de poupança. O objetivo da correção monetária é recompor a corrosão do poder aquisitivo da moeda pela inflação. Não se trata de um “plus”, mas uma decorrência natural do direito de propriedade garantido no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, na linha dos precedentes proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça . Trata-se de garantia constitucional (“cláusula pétrea”), impassível de ser suprimida por meio de proposta de emenda à Constituição Federal (cf. art. 60, parágrafo 4º, IV, da CF).

O Supremo Tribunal Federal possui entendimento no sentido de que: “A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda” (ADI 493/DF; Relator Min. Moreira Alves; Julgamento: 25/06/1992; Pleno).

A TR é um coeficiente da remuneração mensal média líquida de impostos, de títulos privados ou títulos públicos federais, estaduais e municipais (cf. art. 1º da Lei nº 8.177/91). Primeiramente, apura-se o montante em dinheiro dos certificados e recibos de depósitos bancários emitidos a taxas pré-fixadas. A seguir, são determinadas por meio de fórmula específica as taxas média e efetiva mensais dos referidos índices certificados e recibos. Finalmente, a TR é obtida a partir da taxa média ponderada das trinta instituições relacionadas pelo Banco Central, deduzida de um redutor decorrente da tributação e da taxa real histórica de juros na economia. Assim, a TR pode ser um critério utilizado para a correção da caderneta de poupança, mas não um critério de correção monetária, já que o seu cálculo reflete a captação de recursos junto ao público e não a corrosão do poder aquisitivo da moeda.

Índice de correção monetária é um percentual que traduz, o mais aproximadamente possível, a perda do valor de troca da moeda, mediante a comparação, entre os extremos de determinado período, da variação do preço de certos bens, mercadorias, serviços, salários, dentre outros, para a revisão do pagamento das obrigações que deverá ser feito na medida dessa variação. Essa é a única forma de apurar-se o “valor real” da moeda. Por esses motivos o STF e o STJ têm historicamente definido que o índice que melhor reflete a corrosão do poder aquisitivo da moeda pela inflação é o Índice de Preços ao Consumidor – IPC . Nesse sentido os inúmeros acórdãos proferidos pelo STJ e STF em relação aos chamados expurgos inflacionários.

Também por essa razão a aplicação do índice de correção da caderneta de poupança (atualmente, a TR) não serve de parâmetro aos precatórios, por não constituir índice de correção monetária, devendo ser mantido, como critério de correção destes, o IPCA-E ou outro índice que reflita efetivamente a corrosão do poder aquisitivo da moeda.

2.4.    O parágrafo 11 não se aplica ao art. 78 do ADCT – caso não seja vetado, sua redação deve ser alterada para esse esclarecimento

A alteração do critério de correção dos precatórios, tal como constante da redação proposta do parágrafo 11 do artigo 100 da CF, não se coaduna com o disposto no caput do artigo 78 do ADCT, segundo o qual “os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real” (g.n.). Ora, como visto, a TR não se enquadra no conceito de “valor real” referido por este dispositivo. Portanto, a interpretação sistemática dos dispositivos leva à conclusão de que os precatórios parcelados na forma do artigo 78 do ADCT permanecem com o critério de correção atual (IPCA-E + 6% a.a.). No entanto, a atual redação do parágrafo 11 do artigo 100 pode levar a uma interpretação dúbia e errada, qual seja, submeter também estes precatórios ao novo critério de correção. Assim, acaso não vetado, o parágrafo 11 do art. 100 deve ser alterado para que sua redação seja clara ao excepcionar sua aplicação ao art. 78 do ADCT, que deve continuar sofrendo a correção pelo IPCA-E, acrescido de juros legais, pois apenas assim terá sua liquidação pelo seu valor real.

A adoção de um critério distinto em relação a esses casos decorreria do próprio princípio da igualdade previsto no caput artigo 5º da CF, cujo mote consiste em tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades. A sua aplicação ao caso concreto justificaria a adoção de um critério diferenciado em relação aos credores já submetidos à desvantajosa moratória promovida pela EC 30/00, cuja constitucionalidade até hoje é objeto de julgamento no Supremo Tribunal Federal. Observe-se que não se trata de garantia de direito adquirido a regime jurídico (no caso, regime de correção monetária), mas de garantia da eficácia da norma constitucional prevista no artigo 78 do ADCT e aplicação do princípio da isonomia.

Nesse cenário, caso não seja vetado, deveriam ser expressamente excepcionados da nova regra do parágrafo 11º os precatórios submetidos ao regime de parcelamento instituído pelo artigo 78 do ADCT, mantendo-se para estes o critério atual (IPCA-E), ou outro que reflita adequadamente a inflação do período, acrescido de juros legais.

2.5.    Mudança das regras. Aplicação aos precatórios já expedidos (e pagantes, no caso da união Federal). A credibilidade do Brasil em jogo

A alteração das regras no meio do jogo é sabidamente algo que prejudica a imagem de quem o faz. Alterar o critério de correção dos precatórios mediante inserção “de carona” numa medida proposta com outros objetivos, e que ainda atinja aqueles em andamento, é medida que não fugira à regra e que denigre a imagem do país perante os seus e os estrangeiros que serão atingidos. É medida que vai na contramão de uma série de tantas outras promovidas nos últimos anos, no sentido de aumentar a credibilidade do país, com demonstrações de seriedade, compromisso com a estabilidade das regras e respeito às instituições e separação dos Poderes. Esta é a dimensão do que está em jogo.

Imaginar que a redação proposta comporta interpretação que abarcaria os precatórios já expedidos seria uma agressão simplesmente intolerável perante os seus detentores.

Esses detentores vão desde credores originais, a população em geral, até investidores nacionais e estrangeiros que confiaram na estabilidade das regras do país. No cenário internacional, a credibilidade construída nos últimos anos foi fundamental ao crescimento dos investimentos efetuados por investidores estrangeiros no mercado financeiro e de capitais brasileiros. Um volume considerável desses investimentos foi feito através de Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios – FIDCs – lastreados em precatórios. Estima-se que há alguns bilhões de reais investidos nesses FIDCs, o que evidencia o sucesso do legislador constitucional à época da edição da emenda 30/00 que, ao prever o parcelamento dos precatórios, quis garantir sua livre e desembaraçada comercialização (como reconheceu a  própria Senadora Kátia Abreu reconheceu no relatório da proposta aprovada).

A confiança do investidor é elemento decisivo na alocação do investimento. Os seus principais pilares são a certeza e a segurança. Os investimentos nesses fundos foram efetuados sob a premissa de gerarem uma rentabilidade esperada atrelada ao IPCA-E a título de correção monetária e juros de 0,5% a.m. Atrelar a correção dos precatórios ao índice de correção da caderneta de poupança (atualmente, a TR), implicará evidente instabilidade das normas. Pior, se esta norma atingir precatórios já expedidos (pendentes de pagamento), os danos à imagem do país serão inquestionáveis, na medida em que todos os atuais detentores, inclusive instituições financeiras nacionais e estrangeiras, fundos de hedge e outros, deverão reprecificar seus ativos em função da nova forma de correção, ajustando-os nos níveis acima referidos. Será um irreparável abalo à imagem do país, a um custo alto demais Essa conta fica bastante mais cara em cenários de crise, em que a confiança (e aversão ao risco) assumem papel ainda mais relevante no processo decisório de alocação de investimentos. Medidas como essa deverão respingar como uma pedra no centro do lago, tomando graves proporções no fluxo de investimentos fundamental ao desenvolvimento econômico do país. Configuraria uma conduta ultrapassada, semelhante àquelas praticadas pelo governo nas décadas de 80 e 90, e que geraram “esqueletos” cujos efeitos nocivos são sentidos até hoje.

Em resumo, simplesmente não vale a pena.

3.    A compensação dos valores devidos a título de pagamento de precatórios com débitos a que estariam sujeitos seus titulares

A redação proposta para o parágrafo 9º do artigo 100 da CF prevê que: “No momento do pagamento efetivo dos créditos em precatórios independentemente de regulamentação dele deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos débitos líquidos e certos, inscritos em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial” (g.n.).

Embora a justificativa do dispositivo tenha sido tornar “mais clara a regra de compensação financeira nas hipóteses em que a fazenda pública for, ao mesmo tempo, devedora e credora do titular do precatório”, a sua redação atual conduz à interpretação diversa. Da forma como se encontra redigido o dispositivo, não somente os débitos do atual credor do precatório poderiam ser objeto de compensação, mas também os débitos que o antigo credor possuísse em aberto. Assumindo-se a hipótese de um detentor A, que cedesse em 2009 um precatório com 10 parcelas vincendas ao cessionário B, ainda que à época da transação A não tivesse quaisquer débitos em aberto (até porque no momento da transação o cessionário deverá verificar, como de regra verifica, se o cedente não incorrera em fraude a credores ou à execução ao alienar o seu recebível), assumindo que em 2012 B estivesse para receber o pagamento da 3ª parcela do precatório que adquiriu, ainda que B não possuísse quaisquer débitos em aberto neste momento, acaso A tivesse então contraído débitos que já estivessem inscritos em dívida ativa, B poderia ser surpreendido e ter o valor de sua parcela reduzida na proporção de tal débito, então contraído por A. Seria um evidente absurdo. Mas é o que se pode ler da norma.

A previsão de compensação, tal como redigida atualmente, acarreta enorme insegurança, que comprometerá sobremaneira (senão inviabilizar por completo) a capacidade dos detentores de precatórios comercializarem seus títulos, como quis o legislador constitucional. Como bem ressaltou a I. Senadora Kátia Abreu, ao negar aprovação à Emenda nº 2, não seria legitima a quebra da “possibilidade já constitucionalizada anteriormente, qual seja a de parcelamento e comercialização de precatórios, uma das formas que o Parlamento Nacional encontrou para tentar permitir ao credor de precatórios a recuperação, pelo menos parcial, de seus créditos judicialmente reconhecidos contra as Fazendas Públicas”. Pois é justamente o que ocorrerá se a redação do referido parágrafo 9º não for alterada.

Melhor que fosse vetado o parágrafo, dado que pretende implementar sistema de compensação já vetado anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal (ainda que por razoes de ordem técnica), ou, quando menos,  que seja substituído o termo “credor original” pelo termo “detentor do precatório”, o que permitiria cumprir, de forma adequada, a “compensação financeira nas hipóteses em que a fazenda pública for, ao mesmo tempo, devedora e credora do titular do precatório”, afastando a indesejada segurança que a redação atual oferece. Até porque, como redigida, permite compensação entre devedor e “antigo” credor, o que sequer é razoável.

Em resumo, simplesmente não vale a pena.

4.    Extensão do Sistema Especial de Pagamento de Precatórios por meio de Lei Complementar

A redação proposta para o parágrafo 12º do artigo 100 da CF prevê que: “§ 12 Sem prejuízo do disposto neste artigo, Lei Complementar poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios dispondo inclusive sobre: I – vinculações à receita corrente líquida; II – incidência de encargos; III – forma e prazo para liquidação”.

A inclusão desse parágrafo 12º ao artigo 100 da CF permite que eventual lei complementar venha criar regime especial para pagamento de precatórios, como aquele proposto na redação dada ao 97 do ADCT, atingindo não apenas os estados, Distrito Federal e municípios, como também a União Federal. Como já dito, tal não seria legítimo.

Pior, da forma como redigido abre-se a possibilidade para que a lei complementar possa alterar completamente o prazo de pagamento dos precatórios, sua forma (seja lá o que for), ou de encargos. Poderia, por exemplo, estabelecer que os precatórios sejam pagos em 50 anos e sem a incidência de juros. Parece absurdo, mas é este o caminho que está sendo adotado.

Mais uma vez: quaisquer alterações que tenham o objetivo de aliviar as dívidas judiciais dos entes da Federação deveriam se limitar a procurar solucionar a questão das dívidas acumuladas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, e dentro dos estritos limites do que for submetido ao debate na esfera constitucional. No caso, aquele relativo ao artigo 97 que se propõe seja adicionado ao ADCT. O parágrafo 12, tal qual redigido, cria a possibilidade de se abrir verdadeira caixa de pandora, com efeitos não menos abrangentes para a sociedade e imagem do país como um todo.

Em conclusão, como se vê, as alterações propostas para o art. 100 da constituição merecem grande reflexão. A questão da mudança de critério prevista no seu parágrafo 11 é séria e de fácil observação ao leitor do texto. Implica alteração economicamente injusta e tecnicamente inadequada. Não deveria ser instituída para nenhum dos entes. Caso o fosse, apenas se justificaria sob a perspectiva de reduzir por mais essa via a dívida dos entes da federação, o que já se propõe esteja sendo cuidado (ainda que de forma também inadequada) pelo art. 97 do ADCT. Em qualquer hipótese, qualquer medida neste sentido deveria ter sua aplicação limitada aos precatórios Estaduais, do DF e municipais e excepcionar expressamente sua aplicação aos precatórios parcelados na forma do art. 78 do ADCT.

Não menos sérias serão as conseqüências trazidas pelos parágrafos 9º e 12 do art. 100. O primeiro inviabiliza a segurança jurídica inerente ao direito de propriedade, pois o detentor do precatório não poderá dispor de seu bem, vendendo-o por exemplo, na medida em que o comprador ficará sujeito, durante toda a vida do precatório, aos eventuais débitos fiscais em que venha a estar exposto o primeiro. O parágrafo 12, por sua vez, abre a porta para que lei complementar discipline, essencialmente, tudo a respeito do pagamento de precatórios – desde o prazo até a correção ou juros aplicáveis, podendo transformar em um nada o valor desses títulos.

Finalmente, e mais importante: todas essas medidas, tal qual disciplinadas, afetarão não apenas os títulos a serem emitidos daqui em diante, como aqueles já expedidos no passado, afetando a sociedade como um todo e a credibilidade do país perante o mundo.

Nossa câmara de Deputados tem em suas mãos o poder de ratificar a idéia de que o país mudou e hoje pode contar com a confiança dos seus e da comunidade internacional ou, simplesmente, adotar o caminho mais fácil e aprovar a PEC nº 12/06 na redação encaminhada pelo Senado.

Vivemos hoje épocas muito difíceis e temos o árduo caminho de sobreviver à mais séria crise econômica do pós-guerra.  São momentos em que os atos repercutem de forma ampla nos nossos caminhos. O caminho mais fácil raramente é o melhor. Especialmente agora, não o parece ser. Cabe esperar que nossos representantes pensem da mesma forma.

* Luiz Felipe C. Dias de Souza é advogado em São Paulo e sócio da Jus Finance. Mestre em Direito pela Harvard University.

** Daniel Gatschnigg Cardoso é advogado em São Paulo e sócio da Jus Finance. Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).

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