Valor Economico (15/Maio/2009) – Mônica Izaguirre
A agilidade da Câmara dos Deputados em definir o primeiro relator da versão do Senado para a Proposta de Emenda Constitucional dos precatórios foi positivamente aqui destacada, há três semanas, diante da compreensível agonia dos prefeitos e governadores em dar fim à onda de sequestros judiciais de receita – que tanto desorganizam a administração pública, em geral com consequências mais graves para os mais pobres, que dependem mais da gratuidade de serviços de educação e saúde. Uma coisa, no entanto, é achar que a pressa se justifica e que, diante do lobby não menos agressivo de juristas e credores, os governantes estão cumprindo seu papel ao apoiar, pelo menos no início das novas negociações, a manutenção do texto do Senado – descarada e excessivamente desequilibrado em favor do Poder Público. Outra coisa, bem diferente, é defender tal desequilíbrio.
Os deputados não podem e não devem colocar na balança apenas a necessária proteção da governabilidade nos estados e municípios. A PEC 12/2006 do Senado, que na Câmara virou 351/2009, exige também muito cuidado com outras questões de tanta importância quanto essa, a começar pelo respeito a decisões judiciais já tomadas e a direitos por elas reconhecidos. Isso inclui os precatórios, instrumento pelo qual a Justiça reconhece e manda pagar créditos reclamados por cidadãos e empresas contra o Poder Público. A soberania do Judiciário para arbitrar conflitos resultantes de interpretações divergentes sobre a aplicação das leis é fundamental no modelo de Estado Democrático de Direito escolhido pelos constituintes de 1988 para o Brasil. Tanto que eles colocaram a independência entre os Poderes do Estado no rol de preceitos não passíveis de alteração por emenda constitucional.
Preocupado em não ferir esse preceito, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), relator da PEC 351/09 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, já anunciou convicção sobre a inconstitucionalidade de dois aspectos da PEC 351/09. Um é a quebra da ordem cronológica de pagamento dos precatórios, que pelas regras atuais segue a data da respectiva emissão pela Justiça. Outro ponto problemático é a mudança retroativa da forma de correção das dívidas. Ambas são entendidas por Cunha como interferência em sentenças já emitidas pelo Judiciário, o que, segundo ele, fere não só a independência entre poderes, mas também o direito adquirido dos credores.
Ontem, Cunha disse que vê um terceiro grave equívoco no texto aprovado pelos senadores em abril, embora o deputado ainda não tenha convicção de inconstitucionalidade nesse caso. A PEC permite a compensação entre precatórios e débitos de credores perante os fiscos. Seria uma medida boa não fosse o fato de a compensação ser compulsória e limitada a dívidas do credor original do precatório. Dessa forma, alerta Cunha, a aprovação da PEC representará um golpe no mercado secundário de precatórios, atualmente a única opção de muitos credores originais para não correr o risco de morrer antes de receber seu dinheiro. Afinal, investidores que compraram os precatórios teriam que pagar compulsoriamente, quando recebessem, a dívida tributária das pessoas e empresas que os venderam. Mesmo com os deságios, a manutenção do mercado secundário, tão criticado pelos prefeitos e governadores, é considerada saudável por Eduardo Cunha. Ele só não sabe ainda se poderá tratar da questão na CCJ, que só analisa constitucionalidade, ou se terá que esperar pela comissão de mérito. Seja em que comissão for, ele está decidido a apresentar emenda para corrigir essa ameaça de morte ao mercado secundário.
Cunha acha que pode haver inconstitucionalidade pelo menos no caso de precatórios já vendidos, porque representaria ferir direito adquirido e porque a cessão de direitos de créditos em precatórios contra Estados e municípios é plenamente legal e praticada há anos. A existência de deságios, embora comum e inerente a qualquer mercado secundário de instrumentos de direitos creditórios, é apontada pelos governadores e prefeitos para criticar os negócios com precatórios entre agentes privados e servir de argumento a adoção de leilões pelo poder público.
A maioria dos juristas envolvidos no debate vê na PEC uma tentativa de calote. Alertam que, por causa da longa duração dos processos judiciais que geram precatórios e do atraso do poder público em honrar essas dívidas mesmo após as sentenças, a revisão da forma de correção reduziria a menos da metade o valor da grande maioria dos precatórios pendentes de pagamento. E aí estaria apenas parte do “calote” que a PEC representaria para os credores. A proposta do Senado fixa percentuais mínimos de receita,variáveis conforme o caso, a serem destinados obrigatoriamente por Estados e municípios ao pagamento de precatórios. Desses recursos, a PEC reserva 40% para a fila de pagamento em ordem crescente de valores e 60% para os leilões de deságio. Mas por causa da magnitude da dívida em atraso (estimava-se R$ 100 bilhões em 2005) e dos novos critérios de ordenação da fila de recebimento, esses percentuais não evitarão o calote, na avaliação da Ordem dos Advogados do Brasil.
Os 40% reservados para pagamento prioritário dos credores menores não serão suficientes nem para pagar os precatórios de natureza alimentar, ou seja, aqueles relacionados a diferenças salariais ou de benefícios previdenciários, alerta o escritório Lacerda e Lacerda Advogados. Com isso, esse grupo de credores menores também acabaria sendo empurrado para os leilões de deságio.
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