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A Análise Econômica do Direito é “de direita”?

A análise econômica do Direito se firmou, nas últimas décadas, como um dos mais influentes movimentos nas ciências sociais. A sua força é demonstrada pela grande quantidade de prêmios Nobel de Economia concedidos a pesquisadores de alguma forma ligados à análise econômica do Direito. Nada obstante, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, críticos desse movimento o acusam de ser influenciado por ideologia “de direita”. Outra afirmação recorrente, e que nem sempre assume tom de crítica, é a de que a análise econômica do Direito constitui uma vertente do realismo jurídico (assim, v. g., Smith, 2009). Neste texto, são apresentados elementos em contrariedade às duas afirmações. Em suma, o “Law and Economics” não é um movimento de ordem política, senão que pugna pela adoção do método científico no Direito para que a evolução acadêmica independa das concepções ideológicas dos pesquisadores. Além disso, como será melhor esclarecido, a análise econômica do Direito não tem qualquer relação, histórica ou conceitual, com o denominado realismo jurídico.

Debates ideológicos historicamente permearam discussões econômicas, em especial sobre a rivalidade entre socialismo e capitalismo. Como explica o prêmio Nobel e Professor de Harvard Eric Maskin, até aproximadamente a década de 1940 esses debates eram realizados sem qualquer rigor analítico (Maskin, 2008). Autores como Oskar Lange e Abba Lerner advogavam a superioridade do planejamento central, enquanto outros como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek defendiam o livre mercado. No entanto, termos cruciais da controvérsia, como “descentralização”, não eram definidos conceitualmente por esses economistas. Para que isso fosse possível, era necessário incorporar ao estudo da Economia ferramentas matemáticas que permitissem descrever com precisão as relações de causa e efeito afirmadas por aqueles escritores. Algumas dessas ferramentas sequer existiam à época, como a teoria dos jogos. Essa revolução científica na Economia apenas sobreveio com a obra de autores como Leonid Hurwicz, Paul Samuelson, Oskar Mogenstern e John von Neumann.

Dessa forma, a aceitação de qualquer tese econômica deixa de depender apenas da orientação ideológica do proponente e seu público, passando a demandar a sua submissão ao crivo da ciência. Teorias devem ser descritas com rigor formal, de maneira que todas as suas premissas e consequências sejam explícitas e coerentes. Em seguida, as formulações hipotéticas são testadas pela observação empírica, o que permite refinar ou eliminar hipóteses cujas consequências não sejam confirmadas pelos fatos. Trata-se do mesmo método observado nas ciências naturais, sem o qual inúmeros avanços na Física, Química, Medicina e outras áreas não seriam possíveis.

A análise econômica do Direito é uma linha que propõe transportar o método científico para o estudo das mais diversas expressões do comportamento humano que sejam relevantes para questões jurídicas. Seu ponto de partida ocorreu no final da década de 1950 e início dos anos 1960, com os trabalhos de Gary Becker (1959), Ronald Coase (1960) e Guido Calabresi (1961). Cuida-se de movimento iniciado por economistas e juristas inspirados pelo moderno pensamento econômico. Por isso mesmo, a análise econômica do Direito é indiferente às tradicionais concepções ao redor das quais disputavam diferentes escolas de pensamento no Direito, como formalismo, realismo, jusnaturalismo e positivismo.

Por essa razão, não é correto afirmar que a análise econômica do Direito tenha alguma relação com o realismo jurídico, corrente que foi popular nos Estados Unidos no início do século XX, tendo como expoentes juristas como Roscoe Pound, Benjamin Cardozo, Jerome Frank e Karl Llewellyn. Essa vertente surgiu como oposição ao formalismo que dominou o ensino do Direito nos Estados Unidos no final do século XIX por influência de Cristopher Columbus Langdell. O pensamento realista, na verdade, contribuiu de forma genérica para o estudo multidisciplinar no meio jurídico, na linha do que Roscoe Pound qualificava como “sociological jurisprudence” – Pound defendia que o “professor de Direito moderno deve ser um estudante de sociologia, economia, e política” (Pound, 1907). Essa proposta multidisciplinar abrangia não apenas a Economia, mas também a história, a antropologia, a sociologia, a ciência política e outras disciplinas que permitissem ao jurista compreender a realidade subjacente à sua empreitada. Nesse sentido, todas as vertentes do pensamento jurídico atuais são, em alguma magnitude, alinhadas à proposta realista, na medida em que é inconcebível a compreensão do Direito em completa abstração da sociedade à qual se vincula.

No entanto, realismo jurídico e análise econômica do Direito são substancialmente distintos. Enquanto o realismo jurídico admitia abstratamente o recurso a conhecimentos até então externos ao campo jurídico, sem uniformidade de método ou de programa científico, a análise econômica do Direito assume a metodologia da Economia do bem-estar, possibilitando o surgimento de um programa comum e sistemático de revisão dos institutos jurídicos a partir dessas premissas. A esse respeito, recorde-se que as modernas ferramentas da Economia moderna apenas foram incorporadas às ciências sociais por volta da década de 1940, em momento posterior ao surgimento e popularização do realismo jurídico. O movimento na Economia que foi contemporâneo e teve proposta semelhante ao realismo jurídico era denominado “Economia Institucional”. Curiosamente, um dos primeiros artigos a utilizar a terminologia “Law and Economics” foi escrito por John R. Commons, um dos expoentes da Economia institucional (Commons, 1924-1925). Nenhuma das duas propostas, entretanto, possuía o rigor metodológico da análise econômica do Direito, nem transmitiu a esta linha moderna qualquer característica de sua essência.

Do ponto de vista histórico, como já afirmado, os pensadores que deram início à análise econômica do Direito não tiveram qualquer inspiração na corrente realista. Ronald Coase, considerado o pensador que inaugurou o movimento da análise econômica do Direito, declarou expressamente que, ao escrever seu seminal artigo “The Problem of Social Cost”, não possuía nenhuma intenção de contribuir para a academia jurídica e sua preocupação era exclusivamente influenciar o debate econômico (Coase, 1993). Também Gary Becker, economista que explorou a aplicação do pensamento econômico a áreas “não mercadológicas” até então analisadas principalmente por juristas, como o sistema criminal e as relações familiares, não sofreu qualquer influência da escola jus-realista. A inexistência de conexão histórica entre o realismo jurídico e a análise econômica do Direito também é ressaltada por Richard Posner, outro precursor do Direito e Economia. Posner observa que o realismo não era conhecido por Coase e Becker (Posner, 1993), bem como afirma ser duvidosa a influência daquela corrente do pensamento jurídico sobre o trabalho de Guido Calabresi na área de responsabilidade civil, considerado um dos primeiros no campo da análise econômica do Direito – Posner menciona uma conversa pessoal que teve com Calabresi sobre o assunto (Posner, 2004).

O realismo e a análise econômica do Direito também se diferenciam pela finalidade. Ao passo que a proposta dos pensadores realistas pugnava por uma multidisciplinariedade no âmbito jurídico, a análise econômica do Direito constitui seara interdisciplinar, de modo que a Economia não é mero adendo ou conhecimento auxiliar, senão elemento central do estudo do Direito como política pública (Williamson, 1996). Se a preocupação do realismo era ampliar os limites do Direito, a análise econômica do Direito é absolutamente indiferente à demarcação dessa fronteira. Da mesma forma, a interminável disputa entre positivistas e jusnaturalistas sobre a conexão entre Direito e moral, bem como sobre o que deve guiar o juiz ao decidir casos difíceis, em contraste com sua atividade nos casos obviamente abrangidos pelo texto da regra jurídica, não é do interesse dos proponentes da análise econômica do Direito (o que não significa que a AED não considere questões morais, ou que ignore a dinâmica de tomada de decisão pelo juiz, mas esses são assuntos para outro texto). A AED examina os institutos jurídicos a partir da sua capacidade de gerar ganhos para o bem-estar social, comparando os interesses em jogo e os incentivos que regem os componentes de cada grupo de interesse. Essa análise pode iluminar a aplicação de normas jurídicas estabelecidas, instigar reformas ou auxiliar a tarefa de tomadores de decisões, tanto em casos fáceis quanto em casos difíceis.

Por fim, há uma contradição intrínseca entre, de um lado, acusar a análise econômica do Direito de ser um movimento ideológico “de direita” e, de outro, afirmar que a AED é um fruto do realismo jurídico. Isso porque o realismo jurídico é abertamente identificado como um movimento de esquerda (Williamson, 1996), sendo que diversos dos seus baluartes auxiliaram reformas no âmbito do New Deal. Dentre os realistas que trabalharam para o governo de Franklin Delano Roosevelt figuram Jerome Frank, William O. Douglas e Felix Frankfurther.

Conclui-se, de todo o exposto, que são incorretas as qualificações da análise econômica do Direito como movimento político ou decorrente do realismo jurídico. Sua proposta é precisamente inversa: que o Direito deixe de ser um campo fértil para a atuação disfarçada de concepções ideológicas, mediante a adoção do método científico tal como aplicado nas ciências naturais. Outros campos de estudos sociais já passaram ou estão passando por essa transformação. Que a ideologia não faça o Direito perder o bonde da história.

Referências bibliográficas

Eric Maskin, Mechanism Design: How to Implement Social Goals, 98 American Economic Review 567 (2008).

Gary Becker, The Economics of Discrimination (1959).

Guido Calabresi, Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts, 70 The Yale Law Journal 499 (1961).

Henry Smith, Law and Economics: Realism or Democracy?, 32 Harvard Journal of Law and Public Policy 127, 131 (2009).

John R. Commons, Law and Economics, 34 The Yale Law Journal 371 (1924-1925).

Oliver E. Williamson, Revisiting Legal Realism: The Law, Economics, and Organization Perspective, 5 Industrial and Corporate Change 390 (1996).

Richard A. Posner, Frontiers of Legal Theory 59 (2004).

Richard A. Posner, The Problems of Jurisprudence441 (1993).

Ronald Coase, Law and Economics at Chicago, 36 The Journal of Law and Economics 250 (1993).

Ronald Coase, The Problem of Social Cost, 3 The Journal of Law & Economics 1 (1960).

Roscoe Pound, “The need of a sociological jurisprudence”, p. 611. [1907] In: The Making of Modern Law. Gale. 2017. Gale, Cengage Learning. Acesso em 29 de outubro de 2017: <http://galenet.galegroup.com.ezp-prod1.hul.harvard.edu/servlet/MOML?af=RN&ae=F152540474&srchtp=a&ste=14>.

3 Comments

  1. Rachel Sztajn

    May 17, 2018 @ 11:35 am

    1

    Gostei muito.

  2. Sergio Renato Domingos

    May 17, 2018 @ 12:14 pm

    2

    Excelente!

  3. Maria Tereza Leopardi Mello

    May 17, 2018 @ 9:09 pm

    3

    Caro Bruno,
    Seu post é bastante esclarecedor, coisa importante nesse debate tão ideologizado.
    Permita-me, porém, uma observação sobre esta passagem: “Teorias devem ser descritas com rigor formal, de maneira que todas as suas premissas e consequências sejam explícitas e coerentes. Em seguida, as formulações hipotéticas são testadas pela observação empírica, o que permite refinar ou eliminar hipóteses cujas consequências não sejam confirmadas pelos fatos.”
    Muitos dos modelos econômicos – formalmente rigorosos – adotam premissas não realistas (que muitas vezes passam despercebidas e que podem comprometer a aplicabilidade dos resultados). Além disso, é comum que as hipóteses formuladas a partir de modelos lógico-dedutivos não sejam submetidas a testes empíricos.
    Sou uma defensora do uso da análise econômica no âmbito do Direito, mas temos que entender suas limitações; não podemos atribuir-lhe um poder explicativo que muitas vezes lhe falta.

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